11 julho 2009

O imã e o pastor

Quando entrou na sala, o imã Muhammad Ashafa deparou com seu maior inimigo, o pastor pentecostal James Wuye. Sentiu seu sangue borbulhar. Ali estava o homem que havia liderado a milícia cristã que matara seu mentor espiritual, dois primos e vários amigos. Muhammad virou o rosto. Ao ver o imã, um arrepio de ódio trespassou o corpo do pastor. Sua mão esquerda apertou a direita. Ele sentiu a textura fria da prótese. O muçulmano que respirava o mesmo ar que ele na sala repentinamente abafada comandara a milícia islâmica que decepara seu braço com um golpe de machete. Líderes religiosos, eles haviam sido chamados à casa de governo de Kaduna, no centro da Nigéria, para discutir uma campanha de vacinação contra a poliomielite. Entre os dois, pairava o fantasma de milhares de cadáveres. Seu único desejo era matar. Um ao outro.

O que aconteceu nos minutos seguintes vem mudando o mundo – deles e de todos nós. Um jornalista que os conhecia puxou o pastor e tocou o ombro do imã. Apresentou-os. Juntou suas mãos e disse: “O futuro deste país está em suas mãos. Vocês podem construir ou destruir a Nigéria”. Os dois se encararam, sem armas pela primeira vez. “Até então, eu vinha rezando com fervor por uma oportunidade de vingar minha mão”, diz James. “Quando ele pôs a mão sobre a minha, meu coração estava disparado”, afirma Muhammad. “Como vou me relacionar com esse cara? E as minhas feridas? E a minha vingança? Quando o vi, senti todas as feridas que cicatrizavam dentro de mim abrindo novamente. Eu suava. Meu rosto sorria para ele, mas, por dentro, eu fervia.”

O pastor James Wuye e o imã Muhammad Ashafa contaram sua história durante sua primeira visita ao Brasil, no final de junho, para trazer sua experiência ao Antídoto – Seminário internacional de ações culturais em zonas de conflito, a convite do Itaú Cultural. Ao ouvi-los, a pergunta que ecoa sem parar é: como foi possível para aqueles dois homens superar tanto ódio, tanta dor, tanto sangue derramado?

James e Muhammad são a síntese do conflito religioso que divide a Nigéria, ocupada ao norte por muçulmanos, ao sul por cristãos. No centro do país, Kaduna, onde ambos vivem, é espremida por forças opostas. As disputas religiosas são a porção mais visível das diferenças acirradas pela colonização britânica. Em 1914, os ingleses juntaram sul e norte, num país inventado em gabinete. No lado de dentro das fronteiras riscadas no papel, uma população dividida em 250 etnias, com costumes e culturas diferentes, fervilhava em ódios mútuos. Com 150 milhões de habitantes separados em trincheiras de rancor, a Nigéria está sempre a um segundo de explodir.

Para o pastor e o imã, o ponto de virada começou em maio de 1995, naquele aperto de mãos na sede da administração de Kaduna. Mas somente um ano depois voltaram a se encontrar em público para o primeiro de muitos diálogos inter-religiosos. Durante o ano que passou, Muhammad deu o primeiro passo, ao procurar James na igreja. Ao vê-lo em território inimigo, o cristão concluiu que o muçulmano pretendia obter informações estratégicas para usar no próximo conflito. Vinha não para se aproximar, mas para espionar. Estava certo, como confessou Muhammad depois. Mas, aos poucos, algo começou a acontecer com eles. Dentro deles. Descobriram-se mais semelhantes que diferentes.

O muçulmano e o cristão perceberam que sua infância fora parecida, que vinham do mesmo gueto, tinham os mesmos medos e as mesmas aspirações, ambos olhavam para mulheres bonitas e gostavam de futebol. “Quando conversamos, descobrimos que ambos tivemos uma juventude bastante aventureira. Eu perguntava: ‘Você também fez isso? Oh, boy!’”, diz o pastor James. Trocam olhares cúmplices. Mas nenhum dos dois conta o que ambos tinham feito na tal “juventude aventureira”.